segunda-feira, 6 de abril de 2020

COMO OS NEGÓCIOS CÍVEIS TEM SIDO ATINGIDOS PELA PANDEMIA E O QUE É RECOMENDÁVEL AOS EMPRESÁRIOS FAZEREM AGORA?




Com o intuito de deter a gigantesca transmissão do coronavírus (COVID-19), os Estados e Municípios brasileiros determinaram recentemente, como uma das medidas visando o imediato distanciamento social, o fechamento no país de todos os Shoppings Centers e Comércios em Geral, salvo dos negócios que desenvolvem atividades essenciais, ou têm condições e estrutura adequadas para adotar o sistema de delivery.

Diante disso, há uma sensação de completa escuridão quanto ao andamento dos contratos cíveis vigentes, especialmente para aqueles empreendedores que não puderam manter abertos seus negócios, seja porque não exercem atividades essenciais, seja porque não possuem estrutura e mão-de-obra necessárias para desde já adotar o sistema de delivery.

É que o sistema de delivery, diferentemente do que muitos pensam, pode gerar um custo inicial e mensal para ser implantado e mantido que muitas vezes não é baixo, bem como exigir um alto volume de vendas para ser financeiramente viável. Além disso, para que ele funcione com eficiência é fundamental a presença física de ao menos alguns funcionários.

Ocorre que boa parte dos funcionários, antes ainda da medida de distanciamento social, já estava se recusando a comparecer ao trabalho por medo de pegar a doença, quer nos trajetos de ida e volta via transporte público, quer no próprio ambiente de trabalho, sendo que atualmente vários Sindicatos já têm aconselhado o cumprimento à risca das orientações da OMS e das autoridades científicas e técnicas competentes, bem como das regras governamentais, para que todos que puderem fiquem em suas casas, o que também dificulta a efetivação na prática do sistema de delivery.

E tal situação se agrava bastante para o micro e pequeno empresário que, além de ter de ficar em casa, ainda não possa, por conta do setor em que atue, fazer a opção de trabalho, via home office ou teletrabalho, o qual até esse momento se encontra na realidade à margem do governo, ou seja, invisível e sem conseguir auferir qualquer receita.

De fato, ainda não é possível calcular o impacto que a pandemia provocará na economia, muitos menos quais os segmentos que mais serão atingidos. No entanto, as relações contratuais já estão sendo bastante afetadas e a maioria dos contratantes se encontra perdida, até porque a pandemia decorre de um evento excepcional e extraordinário que configura força maior e alcança ao mesmo tempo, ressalte-se, ambos os lados dos contratos, sendo grande a probabilidade de haver futuramente a divisão, ou compartilhamento, de prejuízos entre as partes, ainda que proporcional à realidade e posição de cada uma nestas avenças.

O atual sistema jurídico brasileiro dá uma boa direção, mas pode não conseguir solucionar satisfatoriamente todos os conflitos advindos da pandemia, pois os aspectos a serem encarados são tantos que não é possível criar uma fórmula jurídica única para resolvê-los em uma só “tacada”, razão pela qual se mostra necessário especificá-los ao máximo, conforme a essência, natureza e peculiaridades de cada um, visando alcançar a solução mais equilibrada e justa possível que atenda aos dois lados dos contratos.

De qualquer modo, é certo que os contratos cíveis podem ser desde já encerrados, ou revisados, por meio, neste último caso, da flexibilização das obrigações estabelecidas, com o objetivo de preservá-los equilibradamente.

Por outro lado, igualmente é certo que muitos destes negócios não aguentarão aguardar qualquer sentença judicial de mérito irrecorrível, até porque mesmo neste início de distanciamento social já existem empresas fechando definitivamente e outras que estão prestes a se evaporar. E neste tipo de cenário, a revisão dos contratos não mais vingará, ou se tornará impossível, restando somente o caminho da dissolução contratual, quando então se passará a discutir sobre à incidência ou não de multas rescisórias, ou indenizações.

Diante disso, pergunta-se: O que fazer para encerrar ou ajustar os contratos cíveis já consolidados, antes da atual crise, e atingir o equilíbrio contratual, atendendo às necessidades dos dois lados?

Recomenda-se ter como ponto de partida na área contratual cível a TEORIA DA IMPREVISÃO que relativiza, ou seja, suaviza, o princípio do pacta sunt servanda, que por sua vez dita a regra de que o “contrato faz lei entre as partes”, bem como embasa juridicamente o encerramento ou descumprimento de uma avença, ou de uma obrigação, em virtude da ocorrência de um evento extraordinário e imprevisível, como é o caso desta pandemia.

Tal teoria decorre da chamada cláusula rebus sic stantibus (que em português significa "estando assim as coisas") que especifica que as partes de um contrato, tratado internacional ou, de forma mais geral, acordo, estabelecem disposições levando em conta a situação de fato existente no momento de sua celebração, podendo assim utilizá-la como forma de rompimento ou revisão, caso ocorram mudanças substanciais em virtude de um evento extraordinário e imprevisível que cause desvantagem a uma das partes.

A aplicação desta teoria como forma de encerrar ou revisar os contratos cíveis terá de ser moldada para cada caso, uma vez que alguns setores de mercado certamente serão mais atingidos do que outros, sendo que mesmo para alguns negócios que façam parte de “semelhante” ramo de atuação ainda assim poderá haver particularidades a serem consideradas, motivo pelo qual para cada negócio sugere-se tomar uma medida específica, adequada e justa, enquanto a pandemia não cessar ou no mínimo perder sua força, sob pena de não se conseguir atingir o equilíbrio contratual.

No Código Civil já há fundamento para a aplicação da teoria da imprevisão, conforme dispõem os seus artigos 317, 393, 421-A, 478 a 480, que determinam o encerramento, ou a revisão, dos contratos somente de maneira excepcional e limitada, a saber: 

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:  I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. (Destacou-se).
Nesse mesmo sentido, há também legislação especial que pode servir de embasamento para tal teoria, como é o caso da Lei de Locações (Lei 8.245/91) que em seu artigo 18 diz:
Art. 18. É lícito às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de reajuste.
Igualmente, e com ainda mais força, é possível para fundamentar essa mesma teoria se valer da própria Constituição Federal, a Lei Maior do país, de onde todas as outras leis, normas e até mesmo contratos retiram seu fundamento de validade, de acordo, dentre outros, com os seguintes artigos escritos: 
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...). III - a dignidade da pessoa humanaIV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (...).
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...).

Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...). VII - redução das desigualdades regionais e sociais; (...).
Ainda que não se encontre na recentíssima Lei 13.966/2019 (Nova Lei de Franquia) absolutamente nada para sustentar a teoria da imprevisão, salvo a simples citação, no inciso II, parágrafo único do art. 3º, das expressões “excessiva onerosidade” e “equilíbrio econômico-financeiro”, no tocante à sublocação de ponto comercial do franqueador ao franqueado, mesmo assim toda a fundamentação jurídica ora exposta aplica-se às relações contratuais de franquia.

Isso porque, o empresário, quer seja franqueador, quer seja franqueado, pode muito bem pegar emprestado os mesmos artigos especialmente das leis gerais já reproduzidas para fundamentar tal teoria e a partir disto encerrar ou revisar o contrato de franquia, na medida em que, quando a lei especial é omissa sobre qualquer tema, o ordenamento jurídico nacional, por meio do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e art. 140 do Código de Processo Civil, permite a aplicação por analogia da lei geral, qual seja, o Código Civil que por sua vez tira o seu fundamento de validade da Constituição Federal.

Mesmo com tudo isso, não pense que bastará ao Judiciário se pautar nesse tipo de embasamento jurídico e em situações ocorridas no passado, quer no Brasil ou Exterior, em que também foi aplicada a teoria da imprevisão, para encontrar a melhor solução jurídica, posto que a pandemia de coronavírus gerou algo totalmente novo no planeta, ao afetar ao mesmo tempo, saliente-se, os dois lados dos contratos, tornando ainda mais difícil a tarefa judicial de interpretar o sistema jurídico disponível, ajustá-lo a cada caso concreto e proferir a decisão mais equilibrada e justa.

Logo, não é muito inteligente neste momento transferir desde já, ou somente, ao Judiciário tal trabalho, o qual, além de ter de enfrentar essa nova situação que vem atingindo a todos, deparar-se-á com uma nova realidade estrutural devido a uma enxurrada de ações judiciais que está por vir, lembrando que muito antes da COVID-19 tal sistema já era muito burocrático, lento e atolado de processos.

Assim, por conta destes aspectos e do risco de o Judiciário poder ao final proferir decepcionantes sentenças definitivas de mérito, recomenda-se, ainda mais do que em outros tempos, aos próprios contratantes, que são na verdade os que mais conhecem de perto as particularidades de seus negócios, buscarem de forma amigável e rápida ajustar ou encerrar, previamente e diretamente, os contratos, em conformidade com a realidade que se apresentar para cada caso e quantas vezes for necessário, já que o fenômeno ora tratado também é, para piorar, mutável.

Para tanto, também se sugere às partes contratantes valerem-se, preferencialmente, de assessoria jurídica especializada, ou no mínimo de auxílio do advogado de confiança, a fim de sempre que for preciso conseguirem especificar com maior precisão e segurança jurídica todos os detalhes negociais relevantes, bem como obter o maior equilíbrio contratual possível.

Em outras palavras, ganhará muita força daqui para frente a arte de saber renegociar amigavelmente, com competência, rapidez e quantas vezes for necessário, as condições contratuais vigentes, sendo este o caminho jurídico que nesse momento se apresenta mais promissor, até porque a cada dia que se passa da atual crise há um novo aprendizado ou fator a ser assimilado por todos, tanto é que aquilo que se mostra certo e satisfatório para hoje poderá se mostrar errado e insuficiente para amanhã.

A pandemia apareceu como um imenso asteroide que colidiu fortemente com a terra e colocou repentinamente as partes contratantes, cara a cara, em uma espécie de labirinto jurídico, econômico e social, do qual somente será possível sair mais rapidamente, por meio de ajuda mútua que resulte em acordos contratuais diretos e equilibrados que por sua vez possibilitem o encerramento ou a conservação não litigiosa dos negócios, acordos estes que sempre que for preciso poderão ser revistos.

Portanto, convém às partes contratantes assumirem desde já esse protagonismo na solução das questões jurídicas decorrentes do coronavírus, sem deixar de lado a avaliação dos custos e consequências jurídicas advindas da tomada de qualquer decisão.


Daniel Dezontini, advogado e sócio fundador do escritório Dezontini Sociedade de Advogados, pós-graduado na área de direito processual civil pela PUC/SP, especialista em direito contratual pelo Centro de Extensão Universitário (CEU) e ampla experiência na área de franchising, locações e direito contratual. Contato: daniel@dezontiniadvogados.com.br; Site: www.dezontiniadvogados.com.br; Blog:
http://www.advogadoespecialistalojistapandemia.blogspot.com.br.



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